Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos na mulher

Archives of Clinical Psychiatry (São Paulo)

REVISÃO DE LITERATURA

Epidemiologia dos transtornos psiquiátricos na mulher

Epidemiology of women’s psychiatric disorders

Laura Helena S. G. de AndradeI; Maria Carmen VianaII; Camila Magalhães SilveiraIII

IMédica psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP-LIM 23). Doutora em Psiquiatria pela FMUSP
IIMédica psiquiatra, doutora em Psiquiatria pela Universidade de Londres, professora adjunta e coordenadora da Disciplina de Psiquiatria do Departamento de Clínica Médica da Escola de Medicina da Santa Casa de Misericórdia de Vitória
IIIMédica psiquiatra e pesquisadora do Núcleo de Epidemiologia Psiquiátrica do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HC-FMUSP-LIM 23)

RESUMO

A conscientização de que os transtornos mentais representam um sério problema de saúde pública é relativamente recente, ocorrendo a partir da publicação do estudo The Global Burden of Disease pela Organização Mundial da Saúde. Diferenças de gênero na incidência, prevalência e curso de transtornos mentais, assim como na apresentação clínica e na resposta terapêutica, têm sido extensivamente demonstradas por estudos epidemiológicos.

Palavras-chave: Saúde mental da mulher, epidemiologia psiquiátrica, prevalência de transtornos mentais, diferenças de gênero, ciclo reprodutivo.

ABSTRACT

The awareness that mental disorders present a serious public health problem is relatively new, occurring after the publication of The Global Burden of Disease by the World Health Organization. Gender differences in the incidence, prevalence, and course of mental disorders, as well as in their clinical features and response to treatment; have been extensively demonstrated in epidemiological studies.

Key-words: Women’s mental health, psychiatric epidemiology, prevalence of mental disorders, gender differences, reproductive cicle.

Introdução

A conscientização de que os transtornos mentais representam um sério problema de saúde pública é relativamente recente, ocorrendo a partir de publicação realizada pela Organização Mundial da Saúde e por pesquisadores da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, em 1994 (Lopez e Murray, 1998). Utilizando como medida uma combinação do número de anos vividos com incapacidade, e conseqüente deterioração da qualidade de vida, e do número de anos perdidos por morte prematura causada pela doença (medidos pela unidade Disability Adjusted Life Years – DALYs), verificou-se que doenças como transtornos depressivos e transtornos cardiovasculares estão rapidamente substituindo a desnutrição, complicações perinatais e doenças infectocontagiosas em países subdesenvolvidos, onde vivem quatro quintos da população do mundo. Em países da Ásia e da América Latina, essa transição epidemiológica vem ocorrendo sem a devida adequação do planejamento de serviços e assistência à saúde pública (Thornicroft e Maingay, 2002). Embora os transtornos mentais causem pouco mais de 1% da mortalidade, são responsáveis por mais de 12% da incapacitação decorrente de doenças. Esse porcentual aumenta para 23% em países desenvolvidos. Das dez principais causas de incapacitação, cinco delas são transtornos psiquiátricos, sendo a depressão responsável por 13% das incapacitações, alcoolismo por 7,1%, esquizofrenia por 4%, transtorno bipolar por 3,3% e transtorno obsessivo-compulsivo por 2,8% (Lopez e Murray, 1998).

Na idade adulta emergem grandes diferenças entre homens e mulheres em relação aos transtornos mentais. A mulher apresenta vulnerabilidade marcante a sintomas ansiosos e depressivos, especialmente associados ao período reprodutivo. A depressão é, comprovadamente, a doença que mais causa incapacitação em mulheres, tanto em países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento. No mundo, a morte por suicídio é a segunda causa de morte para mulheres na faixa de 15 a 44 anos de idade, sendo precedida somente por tuberculose.

Além da depressão, dentre as dez principais causas de mortalidade prematura e incapacitação em mulheres em países desenvolvidos no ano de 1990, a esquizofrenia ficou em segundo lugar, o transtorno afetivo bipolar, em quarto, transtorno obsessivo-compulsivo, em quinto, abuso de álcool, em sexto e suicídio, em nono lugar. As mesmas condições aparecem entre as 15 principais causas de sobrecarga global em regiões subdesenvolvidas, porém em diferente ordenação, e suicídio sobe para a quarta colocação. Tabagismo, abuso de drogas ilícitas e sexo desprotegido foram outras condições que se mostraram, direta ou indiretamente, associadas a transtornos mentais da mulher e que se constituem em importantes fatores de risco para outras condições deletérias à saúde.

Diferenças de gênero na ocorrência de transtornos mentais

Vários estudos epidemiológicos têm demonstrado diferenças de gênero na incidência, prevalência e curso de transtornos mentais e do comportamento. Mulheres apresentam maiores taxas de prevalência de transtornos de ansiedade e do humor que homens, enquanto estes apresentam maior prevalência de transtornos associados ao uso de substâncias psicoativas, incluindo álcool, transtornos de personalidade anti-social e esquizotípica, transtornos do controle de impulsos e de déficit de atenção e hiperatividade na infância e na vida adulta. Nos transtornos cuja prevalência é semelhante em homens e mulheres, são observadas diferenças na idade de início, perfil sintomatológico e resposta ao tratamento. Têm, ainda, sido identificados diferentes padrões de comorbidade psiquiátrica e psiquiátrica/física em mulheres e homens.

Os estudos de base populacional realizados em países ocidentais têm mostrado que cerca de 35% da população geral adulta não institucionalizada apresenta algum transtorno mental ao longo da vida. Essa taxa chega a atingir cerca de 50% quando se considera também o diagnóstico de dependência de nicotina. Em nosso meio, o estudo realizado na Área de Captação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Andrade et al., 2002) avaliou 1.464 indivíduos, uma amostra representativa da população geral domiciliada com idade igual ou superior a 18 anos. Nesse estudo, as mulheres apresentaram maior freqüência de transtornos afetivos (com exceção de episódios psicóticos de exaltação maníaca e distimia), transtornos ansiosos (exceto transtorno obsessivo-compulsivo, ansiedade generalizada e fobia social), transtornos dissociativos (transes e perdas de consciência) e transtornos alimentares. Os homens apresentaram maiores taxas de uso nocivo ou dependência de drogas, incluindo tabaco e álcool. Excluindo a dependência de tabaco, o risco de sofrer um transtorno mental durante a vida foi 1,5 vez maior para as mulheres que para os homens.

Esse padrão repete-se na maioria dos estudos epidemiológicos realizados em países ocidentais. Alguns deles são apresentados na tabela 1: O National Comorbidity Survey (NCS), um estudo de cobertura nacional que avaliou 8.098 indivíduos de 15 a 54 anos, uma amostra probabilística da população geral americana (Kessler et al., 1994); o estudo Nemesis, Netherlands Mental Health Survey and Incidence Study, realizado na Holanda, com amostra nacional de 7.076 indivíduos entre 18 a 64 anos de idade (Bijl et al., 1998); OPCS Surveys of Psychiatric Morbidity in Great Britain, publicado em 1995, um estudo realizado na Inglaterra, Escócia e País de Gales no início da década de 1990, avaliando 10.108 indivíduos de 16 a 64 anos residentes na comunidade (Meltzer et al., 1995); estudo realizado em Santiago, no Chile, avaliando 3.870 residentes da região metropolitana com idade entre 16 e 64 anos (Araya et al., 2001).

Diferenças entre os gêneros foram encontradas em estudos prospectivos para se determinar incidência de transtornos mentais. No estudo NEMESIS, uso de substâncias, particularmente abuso de álcool, foi o transtorno com maior incidência em homens (incidência de 4,09), seguido por depressão (1,72), fobia simples (1,34) e dependência ao álcool (0,82). Para mulheres, o transtorno com maior incidência foi depressão (3,9), seguida por fobia simples (3,17). A razão entre as incidências para mulheres e homens (controlada para idade), fornecendo uma medida do risco das mulheres em relação aos homens, foi de 1,54 para qualquer transtorno mental. Essa razão foi maior para transtornos ansiosos (2,58), particularmente para transtorno de pânico (4,17), seguido pelos transtornos do humor (2,39). A razão se inverte para transtornos relacionados ao uso de substâncias, sendo maior o risco para homens (3,7).

Mortes por suicídio são mais freqüentes em homens do que em mulheres, com a razão de 3,6 homens para 1 mulher no mundo e 3,5:1 no Brasil, em 1995. A única exceção ocorre na China, com semelhantes taxas nas áreas urbanas e maior freqüência entre as mulheres nas áreas rurais. Embora as estatísticas de tentativas de suicídio sejam pouco fidedignas, estas parecem ocorrer com maior freqüência em mulheres que em homens, e entre 10 a 20 vezes mais freqüentemente do que as mortes por suicídio (World Mental Health, 1999).

Tanto em amostras clínicas como em estudos populacionais, a co-ocorrência de dois ou mais transtornos psiquiátricos, chamada comorbidade, é um fenômeno comum. Em estudos populacionais, aproximadamente 30% dos que apresentam algum transtorno psiquiátrico nos 12 meses anteriores à entrevista têm dois ou mais transtornos associados. Kessler et al. (2001) exploraram o padrão de comorbidade entre transtornos mentais e transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas em sete estudos epidemiológicos realizados em seis países (Estados Unidos, Brasil, Canadá, México, Alemanha e Holanda) que utilizaram o mesmo instrumento de avaliação diagnóstica. Os resultados foram consistentes nas diversas populações estudadas, mostrando que um transtorno mental ativo está fortemente associado ao uso de substâncias. Mulheres apresentam maior comorbidade entre depressão e transtornos de ansiedade, particularmente transtorno de pânico e fobias simples. Homens apresentam comorbidade entre problemas relacionados ao uso de substâncias (mais comumente álcool) e transtornos de conduta. A associação entre transtorno mental primário e uso secundário de substâncias foi mais intensa para mulheres (variando de 44% a 70% nos sete estudos) que para homens (11% a 77%). Um dado surpreendente nesses estudos foi a baixa taxa de procura de tratamento especializado, embora tenha sido identificado maior uso de serviços de saúde por essas pessoas.

Os esteróides sexuais femininos, particularmente o estrógeno, agem na modulação do humor, o que, em parte, explicaria a maior prevalência dos transtornos do humor e de ansiedade na mulher. A flutuação dos hormônios gonadais teria alguma influência na modulação do sistema neuroendócrino feminino, da menarca à menopausa. Dunn e Steiner (2000) propuseram uma hipótese de susceptibilidade biológica para explicar a diferença nas prevalências de transtornos de humor entre os gêneros. Segundo esses autores, haveria, na mulher, um desbalanço na interação entre o eixo hipotálamo-hipotalâmico-gonadal e outros neuromoduladores. O ritmo neuroendócrino relacionado à reprodução na mulher seria vulnerável à mudança e altamente afetado por fatores psicossociais, ambientais e fisiológicos.

Por outro lado, considera-se que o estrógeno desempenhe um papel de proteção na esquizofrenia, fazendo que as mulheres tenham idade de início mais tardia, requeiram doses menores de neurolépticos, tenham um curso mais favorável, mais sintomas positivos e sintomas negativos menos graves que os homens. Episódios psicóticos agudos ocorrem em períodos do ciclo com baixos níveis de estradiol (Huber et al., 2001). Nesse estudo, os autores verificaram uma correlação positiva entre níveis de estrógeno e desempenho em testes cognitivos.

Transtornos depressivos

Uma das observações mais documentadas em estudos epidemiológicos é a maior prevalência de depressão em mulheres que em homens. Essa diferença tem sido observada em várias regiões do mundo, mediante a aplicação de diferentes instrumentos de avaliação e critérios diagnósticos operacionais. A razão entre as taxas de prevalência em mulheres e homens tem variado entre 1,5 e 3,0, com uma média de 2 mulheres para cada homem. Um relato brasileiro advém do estudo realizado em uma pequena cidade de Minas Gerais, no qual Vorcaro et al. (2001) observaram uma prevalência de depressão no mês anterior à entrevista de 8%, e as mulheres apresentaram um risco três vezes maior que os homens. Apesar dessa consistência, verifica-se grande discrepância nas taxas de prevalência na vida, de acordo com o local do estudo e a população avaliada, com estimativas variando de 6% a 17%. Depressão crônica menor e distimia também têm sido mais freqüentemente observadas em mulheres que em homens, não tendo sido descritas diferenças significativas na prevalência de mania.

Pesquisas epidemiológicas envolvendo crianças e adolescentes demonstraram que a diferença de gênero na incidência de depressão maior se manifesta primeiramente entre os 11 e 14 anos, assim se mantendo no decorrer da vida adulta, o que pode sugerir um papel determinante dos hormônios sexuais, especialmente considerando que outras situações de variação hormonal também têm sido associadas a humor depressivo, como o período pré-menstrual, puerpério, menopausa, uso de contraceptivos orais e terapia de reposição hormonal. No entanto, revisões sistemáticas têm falhado em identificar associações entre esses fatores e taxas mais elevadas de depressão maior em mulheres. Além disso, o efeito da gravidez na incidência e recorrência de depressão tem se mostrado insignificante. A única exceção parece ser o período pós-parto, associado a aumento substancial das taxas de depressão. Os casos que irrompem pela primeira vez nesse período ocorrem com maior freqüência em mulheres que têm forte história familiar de depressão, comparados com os quadros recorrentes.

Além das especificidades biológicas, outras teorias têm sido exploradas para explicar as diferenças de gênero na prevalência de depressão, como, por exemplo, maior persistência dos episódios depressivos em mulheres que em homens, permeada pela influência de pressões sociais, estresse crônico e baixo nível de satisfação associados ao desempenho de papéis tradicionalmente femininos, ou pela forma diferencial entre gêneros de lidar com problemas e buscar soluções. Alguns estudos retrospectivos têm sugerido que a depressão tenha um curso mais arrastado em mulheres que em homens, o que, no entanto, tem sido refutado por estudos metodológicos que demonstraram que essa maior cronicidade se deve a viés de memória (recall bias) diferenciais entre homens e mulheres. Outro argumento que tem sido amplamente divulgado para explicar as diferenças de gênero é que as mulheres teriam maior facilidade de identificar sintomas, admitir que estão deprimidas e de buscar ajuda que os homens. A evidência disponível, no entanto, não permite tal conclusão, já que maiores taxas de depressão em mulheres são observadas tanto em estudos que avaliaram diretamente os sujeitos como naqueles que se basearam em informantes; além disso, a avaliação sistemática dos padrões de resposta a testes psicométricos não mostrou diferenças por gênero, o que tampouco ocorreu quando se avaliou a distribuição da presença e gravidade de sintomas depressivos. É possível, ainda, que homens apresentem o mesmo risco para depressão que mulheres, porém é mais provável que eles manifestem irritabilidade que disforia ou anedonia.

Fatores de risco associados à depressão têm sido identificados, incluindo história familiar, adversidade na infância, aspectos associados à personalidade, isolamento social e exposição a experiências estressantes. Pesquisas de enfoque genético envolvendo o estudo de gêmeos têm demonstrado forte e equivalente hereditariedade para depressão em homens e mulheres. Há, ainda, indicação de que fatores genéticos possam influir na vulnerabilidade para eventos depressogênicos de modo diferencial em meninas pós-puberais comparadas a meninas pré-puberais e a meninos pré e pós-puberais.

O perfil de comorbidade também parece diferir entre gêneros, com mulheres apresentando maiores taxas de ansiedade associada à depressão e homens mostrando maior abuso de substâncias psicoativas e transtornos de conduta.

Outro quadro mais comum em mulheres é a depressão atípica, caracterizada principalmente por sintomas vegetativos reversos, como hipersonia e hiperfagia. No estudo NCS, os casos detectados de depressão atípica foram comparados com os de depressão não atípica (39% de todos os casos detectados de depressão). A porcentagem de mulheres foi maior no grupo com depressão atípica e a idade de início foi mais precoce. O grupo com depressão atípica apresentou maiores índices de sintomas depressivos, idéias e tentativas de suicídio, comorbidade psiquiátrica (pânico, fobia social e dependência a substâncias psicoativas), maior incapacitação e uso de recursos de saúde. História familiar, principalmente parental, de depressão foi mais comum neste subgrupo, assim como abuso sexual e negligência na infância. Na análise desses dados, o sintoma “sensibilidade à rejeição interpessoal” surgiu como um aspecto importante do quadro, assim como a presença de sintomas ansiosos e reatividade do humor associada à irritabilidade, ficando a hipersônia e o ganho de peso como sintomatologias não específicas.

Transtornos de ansiedade

Os estudos epidemiológicos apresentados anteriormente evidenciaram que os transtornos de ansiedade ocorrem com maior freqüência em mulheres que em homens, sendo essas diferenças mais acentuadas para as fobias, principalmente fobias de animais, escuro e lugares fechados. Fobias de altura, avião e sangue não se apresentam diferentemente entre os sexos. Para fobia social, embora as prevalências sejam maiores nas mulheres, a procura de tratamento é maior por homens. Diferenças em relação ao sexo também são encontradas no curso e evolução desses transtornos. Yonkers et al. (2003), em estudo longitudinal no qual os pacientes foram avaliados a cada seis meses, durante oito anos, constataram que as mulheres com transtorno de pânico apresentavam mais comorbidades com depressão e agorafobia e três vezes mais recaídas que os homens. Para o transtorno de ansiedade generalizada, os achados caminham nessa mesma direção. Dados coletados em quatro importantes estudos epidemiológicos realizados no Brasil, Holanda, Canadá e Estados Unidos estimaram a prevalência ao longo da vida para o transtorno de ansiedade generalizada (TAG), que variou de 1,9% a 5,3% (prevalência combinada = 3,9%) e de 1,0% a 2,9% (prevalência combinada = 2,1%) no ano anterior. A razão entre as taxas de prevalência em mulheres e homens foi de aproximadamente 2:1 e teve como idade de início o final da adolescência e meados da vida adulta (Kessler et al., 2002).

Existem várias explicações para essas diferenças entre os gêneros nas prevalências dos transtornos de ansiedade. Além de fatores como maior aceitação cultural do medo e comportamento de esquiva em mulheres e diferente padrões adaptativos, os homens tendem a usar substâncias, como a nicotina e o álcool, como automedicação, o que poderia mascarar a sintomatologia primária. Para Barlow (2002), as mulheres são mais susceptíveis a eventos estressantes na infância e adolescência, o que, associado à percepção que seus comportamentos causam pouco impacto no ambiente, causaria um sentimento de descontrole e o conseqüente desenvolvimento de padrões pessimistas desadaptativos de avaliação da realidade. Esses fatores associados à vulnerabilidade biológica geneticamente determinada de ser reativo biologicamente às mudanças ambientais explicariam a maior ocorrência desses transtornos em mulheres.

Transtornos alimentares

Os transtornos alimentares (TA), particularmente a anorexia e a bulimia nervosa, são causas importantes de morbidade e mortalidade em adolescentes do sexo feminino e mulheres jovens. Esses transtornos estão associados a conseqüências clínicas e psicológicas devastadoras, incluindo retardo no crescimento e desenvolvimento, infertilidade, osteoporose e morte.

As pacientes portadoras de TA costumam apresentar história clínica bastante típica, o que pode levar ao diagnóstico sem auxílio de métodos laboratoriais. A abordagem clínica completa deve ressaltar: início do quadro, velocidade da perda de peso, magnitude da perda, hábitos alimentares, descrição detalhada da ingestão alimentar, uso de laxativos, diuréticos ou medicações anorexígenas; distúrbios gastrointestinais, alterações na pele e dentição, além da história menstrual. Outro detalhe importante é avaliar o nível de atividade física visando a determinar o gasto energético diário de cada paciente. É essencial, no entanto, que se afastem, de maneira segura, causas orgânicas, como: desnutrição, tumores do sistema nervoso central, doenças consuptivas, síndromes de má-absorção intestinal, doenças do colágeno, hipotiroidismo, fibrose cística, diabetes mellitus e infecções, antes de se iniciar a terapêutica psiquiátrica e nutricional.

A anorexia nervosa (AN) caracteriza-se por recusa em manter o peso corporal dentro do mínimo esperado para a idade e a altura, medo intenso de engordar ou de se tornar obeso (mesmo apresentando déficit e desnutrição), distorção da imagem corporal ou negação da gravidade de sua condição nutricional, amenorréia primária ou secundária. De acordo com o tipo de comportamento alimentar, a AN é também dividida nos subtipos restritivo e purgativo.

A bulimia nervosa (BN) define-se pela presença freqüente de compulsão alimentar, com ingestão, em um período curto de tempo (inferior a 2 horas), de grande quantidade de alimento. Esses episódios são acompanhados de sentimento de perda do controle sobre a quantidade de alimentos ingeridos e seguidos freqüentemente de eventos compensatórios para prevenção de ganho de peso (vômitos provocados, uso de laxantes, diuréticos, inibidores de apetite, enemas, realização de exercício excessivo e de jejum).

As pacientes com BN podem assemelhar-se muito às que têm NA, visto que possuem medo de ganhar peso, desejam perder peso, apresentam nível equivalente de insatisfação com o próprio corpo e a distorção da imagem corporal também pode estar presente, entretanto um diagnóstico de BN não deve ser dado quando a perturbação ocorrer apenas durante episódios de anorexia nervosa. Dentre os transtornos alimentares sem outra especificação, ressaltam-se os quadros atípicos (parciais) de AN e BN e o transtorno de compulsão alimentar periódica (TCAP).

Os transtornos alimentares são mais prevalentes em adolescentes e adultos jovens pertencentes a todos os grupos étnicos, sendo aproximadamente dez vezes mais comuns em mulheres que em homens. Antigamente, esses transtornos eram relacionados a indivíduos de cor branca e de países industrializados, porém estudos recentes têm questionado o papel e importância de fatores sociais e culturais nos transtornos alimentares. Hoek et al. (1998), assim como outros autores, discordam de que os transtornos alimentares sejam um fenômeno puramente “ocidental” e outros estudos apontam para uma distribuição socio-econômica mais ampla dos transtornos alimentares e para a presença de problemas de compulsão alimentar entre os homens.

O risco de se desenvolver anorexia nervosa em mulheres é de 0,5% a 1%, mas não é um transtorno comum na população geral (Hay, 1998). A bulimia nervosa ocorre em 1% das mulheres jovens ocidentais e as síndromes de transtornos alimentares parciais ou transtornos alimentares sem outra especificação (TASOE) têm prevalência de 2% a 5% . Os quadros atípicos representam manifestações mais leves ou incompletas, muito mais freqüentes que as síndromes completas (5:1) e com risco de evoluírem para estas.

Uma revisão sistemática de 12 estudos de incidência cumulativa na população geral demonstrou incidência média anual de 18,5 por 100.000 em mulheres e de 2,25 por 100.000 por ano em homens Há evidências limitadas de alterações na incidência geral da anorexia nervosa no decorrer do tempo (Pawluck e Gorey, 1998). A incidência estimada para bulimia nervosa foi mais elevada, tendo sido de 28,8 em mulheres e de 0,8 nos homens por 100.000 a cada ano.

Os transtornos alimentares são particularmente comuns em mulheres com diabetes tipo I, em que mais de um terço delas desenvolve transtornos alimentares. Logo, essas mulheres devem ser vistas com maior rigor, em razão do risco aumentado para complicações microvasculares e metabólicas.

Problemas de infertilidade e disfunção do ciclo menstrual ocorrem com freqüência em mulheres com comportamentos alimentares anormais,mesmo sem evidência clínica de transtorno alimentar. Na verdade, 58% das mulheres amenorréicas ou oligomenorréicas que vão a clínicas de infertilidade apresentam transtorno alimentar. As mulheres com amenorréia hipotalâmica funcional apresentam altos índices de características psicológicas associadas aos transtornos alimentares, tais como: sensação de inadequação, insegurança, perda de controle em relação à vida e confusão em identificar e responder a diferentes estados emocionais e a sensações do corpo relacionadas à alimentação (Hadigan et al., 2000). Mesmo que o peso corporal tenha se restabelecido parcial ou inteiramente, a presença de transtornos alimentares subclínicos pode contribuir para a persistência da amenorréia.

Pacientes portadores de distúrbios alimentares têm um índice de mortalidade 12 vezes maior que o da população normal da mesma faixa etária e duas vezes maior do que pacientes portadores de outros transtornos psiquiátricos.

Os fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares incluem pessoas dedicadas a atividades que exigem magreza, como: bailarinas, esportistas, jóqueis e modelos e certos tipos de traços de personalidade que têm como característica baixa auto-estima, dificuldade de expressar emoções e resolver conflitos e perfeccionismo.

O papel da história familiar no desenvolvimento dos transtornos alimentares ainda não é claro, pois os estudos são inconsistentes. Alguns estudos associam história familiar de transtorno do humor em parentes de primeiro grau como fator de risco.

Transtornos associados ao ciclo reprodutivo

Disforia pré-menstrual

Algumas mulheres podem ter, durante os anos reprodutivos, uma série de sintomas emocionais e alterações de comportamento extremamente desagradáveis no período perimenstrual (definido como a semana anterior à menstruação até poucos dias após o seu início), que vão desde a conhecida síndrome pré-menstrual, passando por exacerbações de outros transtornos físicos ou mentais (como depressão e ansiedade) preexistentes, chegando ao extremo em gravidade, o transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM), que aparece no apêndice do DSM-IV (APA, 1995). O critério do DSM-IV requer cinco sintomas de uma lista de dez, sendo obrigatório um dos quatro primeiros (humor depressivo ou disforia, ansiedade ou tensão, labilidade afetiva, irritabilidade, diminuição do interesse pelas atividades habituais, dificuldade de concentração, significativa falta de energia, mudanças importantes de apetite – como excessos alimentares ou episódios de voracidade –, hipersônia ou insônia, sensação de estar “no limite” e outros sintomas físicos, como sensibilidade mamária ou inchaço). Os sintomas devem interferir nas atividades habituais, não ser a exacerbação de transtornos preexistentes e ser verificados prospectivamente por dois ciclos menstruais. Essa definição é tão restritiva que somente os casos de maior gravidade são reconhecidos por esse critério. Já a 10ª edição da Classificação Internacional de Doenças (OMS) apresenta uma definição mais abrangente de transtorno pré-menstrual. Requer somente um sintoma incapacitante. A maioria das mulheres que procuram ajuda se situa nesses dois extremos de definição. O importante é determinar o padrão temporal dos sintomas em relação à menstruação, devendo haver uma clara mudança de intensidade nos períodos pré e pós-menstruais e serem clinicamente significantivos.

A etiologia dos sintomas perimenstruais ainda é desconhecida. Existem evidências recentes de se tratar de um fenômeno mais biológico do que primariamente psicológico ou psicossocial. Kendler et al. (1998) demonstraram que existem fatores genéticos envolvidos. Tanto a supressão temporária da atividade hormonal dos ovários como a menopausa cirúrgica estariam associadas à melhora ou eliminação das queixas pré-menstruais. A atividade ovariana normal seria responsável pela deflagração de eventos bioquímicos no sistema nervoso central e outros tecidos-alvo, causando os sintomas em mulheres vulneráveis. A existência de sintomas de disfunção serotoninérgica comuns para TDPM, ansiedade e depressão, tais como diminuição do controle dos impulsos, humor depressivo, irritabilidade e aumento da necessidade de consumo de carboidratos, assim como o efeito terapêutico de drogas que aumentam a disponibilidade desse neurotransmissor (inibidores de recaptação de serotonina), são fortes evidências de que o sistema serotoninérgico estaria envolvido na gênese da maioria dos sintomas.

Existem poucos estudos epidemiológicos populacionais sobre sintomas perimenstruais (SPM). Isso se deve, em parte, a dificuldades metodológicas, pois somente estudos prospectivos podem prover aferições válidas; além disso, só recentemente esses sintomas foram reconhecidos e apareceram em classificações psiquiátricas. Possivelmente, há uma distribuição contínua dessa sintomatologia na população geral, sendo os sintomas, isoladamente, muito comuns e universais, aparecendo em várias culturas. Estudos mostram que de 70% a 80% das mulheres em idade reprodutiva apresentam algum desses sintomas.

Hylan et al. (1999) avaliaram a prevalência e o impacto dos SPM em mulheres entre 18 a 49 anos da população geral em três países, Estados Unidos, Inglaterra e França. Os resultados foram consistentes entre eles, com 80% das mulheres tendo relatado irritabilidade/raiva, fadiga e sensação de inchaço ou ganho de peso. Esses sintomas foram incapacitantes e provocaram perdas de dias de trabalho. Poucas receberam tratamento adequado, apesar de haverem procurado especialistas. Muitas tinham a crença de não existir tratamento para os seus sintomas.

Wittchen et al. (2002) descreveram, em uma amostra da comunidade de 1.251 mulheres jovens, entre 14 e 24 anos de idade, a incidência, prevalência, comorbidades, estabilidade e fatores associados ao transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM), segundo o critério do DSM-IV (embora não tenha utilizado diários prospectivos por dois ciclos consecutivos). A prevalência no último ano foi de 5,8% (5,3% se excluídos os casos com comorbidade atual com depressão e distimia). A prevalência aumenta para 18,6% se o critério restritivo de incapacitação não for aplicado. A incidência cumulativa ao longo de um ano foi de 7,4%. Somente um a cada quatro casos não apresenta comorbidade com outros transtornos. A comorbidade mais freqüente foi com transtornos de ansiedade (47,4%), transtornos do humor (22,9%) e transtorno somatoforme (28,4%). Menos de 10% dos casos apresentaram remissão no período de seguimento de quatro anos. O TDPM foi particularmente associado com dependência à nicotina e transtorno do estresse pós-traumático, tentativas de suicídio e uso de serviços médicos gerais e de saúde mental.

Angst et al. (2001) descreveram a prevalência de alguns sintomas no período peri-menstrual em 299 mulheres de um coorte de Zurich, entrevistadas cinco vezes, entre as idades de 21 e 35 anos, sendo este o primeiro estudo prospectivo, na população geral, no qual são avaliados sintomas perimenstruais, sua duração, padrão de comorbidade, interferência nas atividades e grau de sofrimento, uso de medicações e procura de tratamento, além de determinadas características de personalidade. A prevalência dos sintomas foi calculada baseando-se na incidência cumulativa de um ano, obtida ao longo de três entrevistas. Os traços de personalidade avaliados foram agressão, extroversão, labilidade autonômica e neuroticismo. Os sintomas avaliados foram nervosismo, irritabilidade, humor depressivo, humor eufórico, humor ansioso, tensão e hiperatividade. Irritabilidade e humor depressivo foram os sintomas mais comuns do período pré-menstrual (44,6% e 29,1%), seguidos por nervosismo e tensão (23,3% e 22,3%). A maioria dos sintomas, com exceção de humor eufórico, foi mais prevalente no período pré-menstrual. Humor irritável e depressivo foram os sintomas mais freqüentes no período menstrual (Tabela 2). Aproximadamente 25% das mulheres não apresentaram nenhum dos sintomas avaliados.

Aproximadamente 50% das mulheres admitiram algum grau de sofrimento associado aos sintomas. Foi esse sofrimento, e não o grau de incapacitação em diversas áreas, como ocupação, lazer, parceiro e amigos, o fator que mais contribuiu para procura de ajuda terapêutica. A relevância clínica foi associada também à duração dos sintomas e ao uso de medicamentos para aliviá-los.

Em relação ao padrão de apresentação dos sintomas, humor depressivo associou-se a ansiedade e tensão, e humor eufórico associou-se a hiperatividade e irritabilidade.

A comorbidade mais comum dos sintomas perimenstruais foi com transtornos do humor e de ansiedade. A associação com depressão breve recorrente foi maior do que com depressão maior (OR = 2,8 e 2,1, respectivamente). Dos transtornos de ansiedade, o mais comum foi transtorno de ansiedade generalizada (OR = 2,6). Foi importante a associação com abuso/dependência de álcool (OR = 4,2), mas não foi verificada associação com dependência de tabaco.

Os traços de personalidade mais comuns nas mulheres que apresentavam sintomas com humor depressivo foram labilidade autonômica e agressividade. Nas mulheres com sintomas perimenstruais sem depressão, o traço de personalidade mais encontrado foi extroversão.

A importância deste trabalho de Angst consiste em demonstrar que existe um grande componente de depressão no critério de transtorno disfórico pré-menstrual do DSM-IV.

É importante que os clínicos sejam alertados sobre os elevados níveis de comorbidade dos transtornos depressivos e ansiosos em mulheres com queixas pré-menstruais, uma vez que a identificação precoce e tratamento adequado desses transtornos reduzem a probabilidade de que se tornem crônicos e recorrentes.

Transtornos mentais associados ao puerpério: maternity blues, depressão e psicose

Transtornos mentais associados ao período puerperal têm sido incorporados aos sistemas de classificação diagnóstica em psiquiatria. A CID-10 acolheu-os no capítulo de síndromes comportamentais associadas a distúrbios fisiológicos e fatores físicos (F50 a F59) e inclui qualquer transtorno que tenha início até a sexta semana após o parto. Podem, ainda, ser classificados como doenças mentais ou doenças do sistema nervoso central complicando o puerpério (O99.3). No DSM-IV, o especificador “com início no pós-parto” foi incorporado ao capítulo de transtornos do humor e deve ser utilizado para caracterizar qualquer episódio que tenha início até a quarta semana após o parto, podendo também ser utilizado para especificar transtornos psicóticos breves. Os transtornos puerperais, tanto psicóticos como depressivos e de ansiedade, não se diferenciam, do ponto de vista sintomatológico, daqueles que não ocorrem no período pós-parto.

A “tristeza do pós-parto”, ou maternity blues, é considerada a mais leve e freqüente das alterações do humor no puerpério, ocorrendo em 26% a 85% das mulheres, dependendo dos critérios diagnósticos utilizados. Rohde et al. (1997), que estudaram 86 puérperas no Brasil, definem esse quadro clínico como uma síndrome de hipersensibilidade emocional da mulher. Crises de choro são comuns, mas nem sempre estão associadas a humor depressivo. Labilidade emocional é também freqüentemente descrita, com alternância de sentimentos de alegria, irritabilidade e tristeza ao longo de um mesmo dia. Sintomas de ansiedade e alterações cognitivas, como dificuldade de atenção, concentração e memorização, podem estar associados ao choro e à tristeza. Os sintomas de elação do humor presentes podem ser intensos, próximos de um quadro hipomaníaco. Esses sintomas iniciam-se no primeiro dia após o parto, desaparecendo ao redor do décimo dia, sem causar prejuízo no desempenho do papel materno e no desenvolvimento de laços afetivos entre a mãe e o bebê. Ocorrem com maior intensidade ao redor do quinto dia depois do parto e estão relacionados às alterações hormonais que ocorrem nesse período, sendo, provavelmente, uma resposta anormal às variações normais de hormônios da tireóide, do eixo hipotálamo-pituitário-adrenal e da cascata serotoninérgica. Sua persistência pode indicar o início de um transtorno do humor mais grave. Entre os fatores de risco associados, figuram história de disforia durante a gravidez, episódio depressivo anterior, neuroticismo e depressão pré-menstrual, indicando maior vulnerabilidade a sintomas afetivos. Os estudos sobre marcadores biológicos são inconclusivos.

Estudos epidemiológicos têm estimado que a depressão pós-parto ocorre em 10% a 15% das puérperas em países desenvolvidos ocidentais e que a maioria dos casos se resolve espontaneamente em 3 a 6 meses (Boyce, 2003). O tratamento, no entanto, deve ser preconizado para abreviar o sofrimento materno e minimizar o impacto familiar. O transtorno depressivo puerperal apresenta o mesmo quadro clínico característico da depressão em outros momentos da vida da mulher, com especificidades relativas à maternidade em si e ao desempenho do papel de mãe. Sentimentos negativos, desinteresse pelo bebê e culpabilidade por não conseguir cuidar dele são freqüentes e podem resultar em um desenvolvimento insatisfatório da interação mãe-bebê. O afastamento ou separação da criança, pela necessidade de que seja cuidada por outrem, pode dificultar ainda mais o estabelecimento de vínculos afetivos e fortalecer a sensação de inadequação materna. O quadro clínico de depressão pós-parto apresenta, com freqüência, curso flutuante, maior instabilidade do humor e sintomas intensos de ansiedade, incluindo ataques de pânico. Nos episódios depressivos mais graves, pode haver ideação suicida, pensamentos obsessivos envolvendo violência contra a criança e agitação psicomotora intensa. Sintomas psicóticos, especialmente delírios, também podem ocorrer e, geralmente, envolvem o recém-nascido.

Os quadros de psicose puerperal ocorrem mais raramente (estima-se 1 caso em 500 a 1.000 nascimentos) e têm início nos primeiros dias após o parto, sendo compostos por episódios depressivos ou maníacos, recorrentes ou não, com sintomas psicóticos de maior gravidade e episódios psicóticos transitórios. Ocorre grave prejuízo da capacidade funcional da mulher, resultando, freqüentemente, na internação psiquiátrica, com importante impacto conjugal e familiar e efeito deletério na relação mãe-bebê. Suicídio ou infanticídio, geralmente associado a alucinações de comando para matar o bebê, podem ocorrer em casos extremos. O risco para episódios psicóticos no pós-parto é mais elevado em mulheres que já tiveram manifestações puerperais de transtornos do humor ou história pregressa de transtorno afetivo não-puerperal. Estima-se que o risco de recorrência de psicose puerperal seja de 30% a 50% a cada parto subseqüente.

História pregressa de depressão, presença de sintomas depressivos na gravidez e história familiar de transtornos do humor e de ansiedade também têm sido identificadas como fatores de risco para transtornos no puerpério. Numa avaliação de mulheres com alterações do humor no pós-parto, identificou-se a presença de algum transtorno psiquiátrico em parentes de primeiro grau em 71% dos casos, com a ocorrência de transtornos do humor em 48% e alcoolismo em 30%, taxas bem mais elevadas do que na população geral, indicando um componente genético na determinação desses transtornos. Fatores de risco psicossociais também têm sido identificados, incluindo alterações psicológicas e sintomas depressivos durante a gestação, eventos adversos durante a gestação e o parto, ausência de suporte social e/ou familiar, relacionamento conjugal deficiente ou tempestuoso, ou ausência de parceiro, gravidez indesejada, relacionamento parental conturbado na infância, dificuldades no desempenho de papéis maternais por falta de experiência prévia ou por experiências interpessoais negativas com a própria mãe, auto-estima limitada, instabilidade financeira ou ocupacional, entre outros.

Transtornos mentais associados a perimenopausa e menopausa

A OMS define perimenopausa como o período que precede a interrupção dos ciclos menstruais até 1 ano depois da última menstruação (em média de 2 a 8 anos), resultante da diminuição progressiva e perda da função folicular ovariana. A perimenopausa tem início, em média, aos 45,5 a 47,5 anos de idade, com uma duração média de 4 anos, até a ocorrência da menopausa, em torno dos 51 anos de idade. A maioria das mulheres apresenta, durante esse período, ciclos menstruais irregulares, com períodos de amenorréia ou de sangramento freqüente, associados à flutuação hormonal que ocorre nesse período decorrente de um desenvolvimento folicular errático. A menopausa é considerada um desencadeamento fisiológico do processo normal de envelhecimento, com falência definitiva da função ovariana, que, por convenção, é reconhecida como tal somente após um período de 12 meses de amenorréia.

Sintomas físicos e psíquicos associados às alterações hormonais são experimentados pela maioria das mulheres durante a perimenopausa. Os sintomas vasomotores, como fogachos ou ondas de calor acompanhados por sudorese intensa, são característicos desse período, ocorrendo com freqüência durante a noite e resultando em piora da qualidade do sono. Podem, ainda, ocorrer palpitações, enxaqueca e cansaço fácil. A atrofia urogenital, que ocorre mais tardiamente, provoca sintomas urinários e ressecamento e desconforto vaginal, podendo levar à dispareunia, que, com a diminuição da libido e da resposta orgásmica resultantes do hipoestrogenismo, costumam conduzir a uma piora da qualidade de vida sexual. A menopausa está associada, ainda, ao aumento do risco para o desenvolvimento tardio de osteoporose e doenças cardiovasculares e, especula-se, de demência de Alzheimer.

As alterações do humor mais prevalentes na perimenopausa e menopausa são irritabilidade, labilidade emocional, episódios freqüentes de choro imotivado, ansiedade, humor depressivo, falta de motivação e energia, dificuldade de concentração e memorização e insônia. A relação entre falência funcional ovariana e manifestações psíquicas não é bem compreendida, mas estas parecem ocorrer com maior freqüência quando há flutuações drásticas nos níveis hormonais, e não em função de sua diminuição gradativa. Estudos epidemiológicos de base populacional não identificam maior incidência de depressão em mulheres nessa faixa etária; no entanto, estudos realizados em serviços de ginecologia têm sistematicamente identificado uma prevalência elevada, maior do que a esperada, de sintomas depressivos durante a perimenopausa e menopausa. Pesquisadores da Universidade de Harvard, em um acompanhamento prospectivo de 996 mulheres durantes 3 anos, identificaram que a presença de história prévia de depressão mostrou-se um fator de risco para o início mais precoce de sintomas perimenopausais (Harlow et al., 1999).

Diferenças transculturais na ocorrência de sintomas físicos e psíquicos associados a perimenopausa e menopausa também têm sido relatadas, indicando a possível influência de outros determinantes, como fatores genéticos, psicológicos, sociais e culturais, incluindo estilo de vida e características nutricionais ou dietéticas.

Considerando que as alterações hormonais próprias da perimenopausa e menopausa ocorrem em todas as mulheres, parece seguro afirmar que o desenvolvimento de transtornos do humor durante esse período depende de outros fatores, além da flutuação hormonal, que confiram vulnerabilidade e predisposição.

Violência contra a mulher

A violência tem sido identificada como um fator de risco para vários agravos à saúde da mulher, tanto física como mental e reprodutiva, e tem se mostrado associada a pior qualidade de vida, maior procura por serviços de saúde, maior exposição a comportamentos de risco (sexo desprotegido, tabagismo, abuso de álcool e outras drogas) e maiores taxas de suicídio e de tentativas de suicídio.

A OMS define violência como “… o uso intencional de força física ou poder, em forma de ameaças ou de atos, contra si próprio(a), outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resulte, ou tenha uma grande probabilidade de resultar, em lesão, morte, dano psicológico, prejuízo do desenvolvimento ou privação” e, especificamente, violência contra a mulher com “… qualquer ato de violência com base no gênero que resulte, ou tenha uma grande probabilidade de resultar, em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico da mulher”.

Ocorrem várias formas de violência contra a mulher, desde atos de violência cometidos antes do nascimento (aborto seletivo por sexo) ou na infância em algumas culturas (infanticídio feminino, acesso diferencial a comida e cuidados médicos, iniciação sexual forçada, mutilação genital), até estupro sistemático durante guerras e conflitos sociais e étnicos, tráfico (servidão laboral e sexual e manutenção em cativeiro), prostituição forçada e violência urbana. As formas mais comuns de violência contra a mulher, no entanto, são perpetradas por seus próprios familiares e parceiros íntimos, envolvendo violência física, psicológica e sexual contra meninas e mulheres adultas, inclusive durante a gravidez e na terceira idade.

A maior parte dos atos de violência contra a mulher resulta em problemas físicos, sociais e psicológicos, não necessariamente causando lesões, incapacitação ou morte, e suas conseqüências podem ser imediatas ou latentes, manifestando-se tardiamente ou estendendo-se por muito tempo depois de a violência ter cessado. Quanto mais grave a forma de violência sofrida e mais longa a sua duração, maior impacto terá na saúde física e mental, e a exposição a múltiplos tipos de violência parece ter um efeito deletério cumulativo.

A exposição da mulher à violência durante a infância, seja como vítima de agressão física, sexual ou emocional, de negligência ou privação, seja, ainda, presenciando atos violentos no domicílio, tem um impacto adverso na saúde e no bem-estar da criança, podendo impedir o seu adequado desenvolvimento físico e mental. A exposição da criança à violência tem se mostrado associada a vários comportamentos de risco – como, por exemplo, tabagismo, obesidade, sexo desprotegido, depressão – que, por sua vez, se configuram em fatores de risco para outros importantes problemas de saúde pública, como câncer, doenças cardiovasculares, infecções sexualmente transmitidas, infecções verticalmente transmitidas, gravidez indesejada, na adolescência ou não, e suicídio (Felitti et al., 1998).

Uma das formas de violência de gênero que mais tem sido estudada é aquela perpetrada por cônjuges ou parceiros íntimos, comumente denominada violência doméstica, em que são característicos o envolvimento emocional e a dependência econômica entre a vítima e o agressor. A violência conjugal pode assumir diversas formas, incluindo violência física (em vários graus de severidade, desde empurrões e tapas até ameaças com armas e homicídio) e sexual (sexo forçado, ou participação forçada em atividades sexuais degradantes ou humilhantes), e é comumente acompanhada por outros comportamentos abusivos, como restrições financeiras, proibição do engajamento social, familiar e ocupacional da mulher e freqüentes atos de intimidação e humilhação. Em 48 estudos de base populacional conduzidos em diversas partes do mundo, entre 10% e 69% das mulheres estudadas relataram terem sofrido algum tipo de violência física por parte do parceiro no decorrer da vida e entre 3% e 52%, no último ano, com altos índices de violência sexual associada (entre 33% e 50%).

Depressão e transtorno de estresse pós-traumático, e seu vasto perfil de comorbidades, são as seqüelas de violência contra a mulher mais freqüentemente relatadas. Transtornos de ansiedade, especialmente fóbico-ansiosos, transtornos alimentares e abuso de álcool e de outras substâncias psicoativas também têm sido mais observados entre mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, assim como disfunções sexuais (dispareunia, vaginismo e transtornos do desejo e da excitação sexual) e doenças físicas com forte componente psicossomático (como síndrome do intestino irritável, fibromialgia e dor crônica). Maiores taxas de suicídio e comportamentos autolesivos também têm sido mais identificados entre mulheres com história de violência. Agravos à saúde reprodutiva, como infertilidade, gravidez indesejada, HIV/Aids, associados à violência contra a mulher, têm se mostrado importantes fatores de risco para transtornos mentais, uso excessivo de serviços de saúde, baixa qualidade de vida, limitado desenvolvimento pessoal e profissional e dificuldade de estabelecer relacionamentos interpessoais e afetivos.

Por fim, mulheres que foram fisicamente agredidas ou sexualmente molestadas na infância apresentam maior risco de revitimização na vida adulta. Coid et al. (2001), em um estudo de 1.207 mulheres em Londres, relataram a freqüente co-ocorrência de múltiplas experiências de abuso físico e sexual, doméstico ou não, na infância e vida adulta. Relataram, ainda, que história de violência sexual antes dos 16 anos associa-se positivamente a violência doméstica (OR 3,54; CI 1,52-8,25) e estupro (OR 2,84; CI 1,09-7,35) na vida adulta, o mesmo ocorrendo com história de espancamento por pais ou cuidadores na infância (OR 3,58; CI 2,06-6,20 e OR 2,70; CI 1,27-5,74, respectivamente, para violência doméstica e estupro), que também se mostrou associada a outras experiências de trauma na idade adulta (OR 3,85; CI 2,23-6,63).

Referências bibliográficas

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. – Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. 4ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.         [ Links ]

ANDRADE, L. et al. – Prevalence of ICD-10 Mental Disorders in a Catchment Area in the City of São Paulo, Brazil. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 37:316-25, 2002.        [ Links ]

ANGST, J. et al. – The epidemiology of perimenstrual psychological symptoms. Acta Psychiatr Scan 104:110-6, 2001.         [ Links ]

ARAYA, R. et al. – Common mental disorders in Santiago, Chile. Br J Psychiatry 178:228-3, 2001.        [ Links ]

BARLOW, D.H. – Anxiety and its disorders: the nature and treatment of anxiety and panic. 2nd ed. New York: The Guilford Press, 2002.        [ Links ]

BIJL, R.V.; RAVELLI, A.; VAN ZESSEN, G. – Prevalence of psychiatric disorder in the general population: results of The Netherlands Mental Health Survey and Incidence Study (NEMESIS). Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol 33(12):587-95, 1998.        [ Links ]

BOYCE, P.M. – Risk factors for postnatal depression: a review and risk factors in Australian populations. Arch Women Ment Health 2003 Aug;6 Suppl 2:S43-50.         [ Links ]

COID, J. et al. – Relation between childhood sexual and physical abuse and risk of revictimization in women: a cross-sectional survey. Lancet 2001;358:450-54.        [ Links ]

DUNN, E.J.; STEINER, M. – The functional neurochemistry of mood disorders in women. In: Steiner M, Yonkers KA, Eriksson E (eds.). Mood disorders in women. London: Martin Dunitz, 2000. pp.71-82.        [ Links ]

FELITTI, V.J. et al. – Relationship of childhood abuse and household dysfunction to many of the leading causes of death in adults: The Adverse Childhood Experiences (ACE) study. Am J Prev Med 14:245-58, 1998.        [ Links ]

HADIGAN, C.M. et al. – Assessment of macronutrient and micronutrient intake in women with anorexia nervosa. Int J Eat Disord 28(3):284-92, 2000.         [ Links ]

HARLOW, B.L. et al. – Prevalence and predictors of depressive symptoms in older premenopausal women: The Harvard Study of Moods and Cycles. Arch Gen Psychiatry 56:418-424, 1999.        [ Links ]

HAY, P.J. – The epidemiology of eating disorder behaviours: an Australian community-based survey. Int J Eat Disord 1998;23:371-82. Lopez, A.D.; Murray, C.C. The global burden of disease, 1990-2020. Nat Med. 4(11):1241-3, 1998.         [ Links ]

HOEK, H.H. et al. – Lack of relation between culture and anorexia nervosa: results of an incidence study on Curacao. N Engl J Med 38:1231-2,1998.        [ Links ]

HUBER TJ, ROLLNIK J, WILHELMS J. Estradiol levels in psychotic disorders. Psychoneuroendocrinology 26:27-35, 2001.        [ Links ]

HYLAN, T.R.; SUNDELL, K.; JUDGE, R. – The impact of premenstrual symptomatology on functioning and treatment-seeking behavior: experience from the United States, United Kingdom, and France. J Womens Health Gend Based Med Oct;8(8):1043, 1999.        [ Links ]

KENDLER, K.S. et al. – Longitudinal population-based twin study of retrospectively reported premenstrual symptoms and lifetime major depression. Am J Psychiatry Sep;155(9):1234-40, 1998.         [ Links ]

KESSLER, R.C. et al. – Lifetime and 12-month prevalence of DSM-II-R psychiatric disorders in the United States: results from the national Comorbidity Survey. Arch Gen Psychiatry 51:8-19, 1994.        [ Links ]

KESSLER, R.C. et al. – Mental-substance comorbidities in the ICPE surveys. Psychiatria Fennica 32(suppl 2):62-79, 2001.        [ Links ]

KESSLER, R.C. et al. – The effects of co-morbidity on the onset and persistence of generalized anxiety disorder in the ICPE surveys. International Consortium in Psychiatric Epidemiology. Psychol Med Oct; 32(7):1213-25, 2002.         [ Links ]

LOPEZ, A.D.; MURRAY, C.C. – The global burden of disease, 1990-2020. Nat Med. 4(11):1241-3, 1998.         [ Links ]

MELTZER, H. et al. – Hinds K. OPCS Surveys of Psychiatric Morbidity in Great Britain Report 1: the prevalence of psychiatric morbidity among adults living in private households. London: HMSO, 1995.        [ Links ]

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. – CID-10 – Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 10ª revisão.        [ Links ]

PAWLUCK, D.E.; GOREY, K.M. – Secular trends in the incidence of anorexia nervosa: integrative review of population-based studies. Int J Eat Disord May; 23(4):347-52, 1998.         [ Links ]

ROHDE, L.A. et al. – Maternity blues in Brazilian women. Acta Psychiatr Scand Mar;95(3):231-5, 1997.         [ Links ]

THORNICROFT, G.; MAINGAY, S. – The global response to mental illness. BMJ 21:325(7365):608-9, 2002.        [ Links ]

VORCARO, C.M. et al. – Unexpected high prevalence of 1-month depression in a small Brazilian community: the Bambui Study. Acta Psychiatr Scand 104(4):257-63, 2001.         [ Links ]

WITTCHEN, H.U. et al. – Prevalence, incidence and stability of premenstrual dysphoric disorder in the community. Psychol Med Jan;32(1):119-32, 2002.         [ Links ]

WORLD MENTAL HEALTH. – Figures and facts about suicide. Geneve: WHO, 1999.        [ Links ]

YONKERS, K.A. et al. – Chronicity, relapse, and illness–course of panic disorder, social phobia, and generalized anxiety disorder: findings in men and women from 8 years of follow-up. Depress Anxiety 17(3):173-9, 2003.        [ Links ]

Endereço para correspondência:
Dra. Maria Carmen Viana
Rua Dr. Eurico de Aguiar, 888, Sala 705
29055-280 – Vitória – ES
E-mail: mcviana@uol.com.br

Recebido: 20/03/2006 – Aceito: 27/03/2006

Fonte:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832006000200003

Print version ISSN 0101-6083On-line version ISSN 1806-938X

Rev. psiquiatr. clín. vol.33 no.2 São Paulo  2006

http://dx.doi.org/10.1590/S0101-60832006000200003