Pacientes que se beneficiam de internação psiquiátrica em hospital geral

Revista Saúde Pública

ARTIGOS ORIGINAIS

Pacientes que se beneficiam de internação psiquiátrica em hospital geral  –  Paulo Dalgalarrondo; Neury J Botega; Cláudio E M Banzato

Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, Brasil

RESUMO

OBJETIVO: A internação psiquiátrica, embora onerosa, continua sendo um recurso terapêutico indispensável para pacientes graves. A internação em unidades psiquiátricas de hospital geral (UPHG) tem sido recomendada como a melhor alternativa aos macro-hospitais psiquiátricos. Nesse sentido, realizou-se estudo com o objetivo de verificar variáveis socioeconômicas e clínicas associadas com o êxito ou o fracasso da internação.
MÉTODOS: Foram revistos dados sociodemográficos e clínicos de 1.463 pacientes internados em uma UPHG de hospital geral no período 1986-1997, utilizando-se análise de regressão logística politômica univariada e multivariada.
RESULTADOS: Por meio da análise multivariada, foram identificados três fatores associados a um pior desfecho da internação (condição de alta ruim e maior tempo de permanência): idade >60 anos, não exercício prévio de função social e diagnóstico de transtorno psicorgânico.
CONCLUSÃO: Embora mais de 80% dos pacientes tratados nessa UPHG tenham apresentado significativa melhora dos sintomas, um subgrupo se beneficiou menos da internação, parecendo requerer intervenções de reabilitação psicossocial ao invés da hospitalização.

Descritores: Hospitalização. Tempo de internação. Pacientes internados. Psiquiatria. Hospitais gerais. Unidade hospitalar de psiquiatria. Fatores socioeconômicos. Reabilitação.

ABSTRACT

OBJECTIVES: Psychiatric hospitalization though burdensome remains a very important therapeutic option for severely-ill psychiatric patients. Hospitalization in general hospital psychiatry units (GHPU) are often regarded as the best option. A study was carried out with the purpose of assessing socioeconomic and medical variables associated with success and failure of hospitalization.
METHODS: A review was performed on sociodemographics and medical data of 1,463 patients admitted to a general hospital’s GHPU in the period between 1986 and 1997. Statistical analysis was conducted using univariate and multivariate polythomic logistic regression.
RESULTS: In the multivariate analysis three factors were identified as associated to poor hospitalization outcomes (poor condition at discharge and longer hospital stay): age >60 years, poor social functioning, and diagnosis of organic mental disorder.
CONCLUSIONS: Although 80% of the patients experienced a considerable symptomatic improvement, a small group benefited less from hospitalization. It is suggestive that these patients would benefit more from psychosocial interventions.

Keywords: Hospitalization. Length of stay. Inpatients. Psychiatry. Hospitals, general. Psychiatric department, hospital. Socioeconomic factors. Rehabilitation.

INTRODUÇÃO

No processo em curso, no Brasil, de reestruturação da atenção à saúde mental, os hospitais psiquiátricos progressivamente têm deixado de constituir a base do sistema assistencial, cedendo terreno a uma rede de serviços extra-hospitalares de crescente complexidade. Contudo, a internação psiquiátrica, a despeito das múltiplas controvérsias que a cerca, continua sendo um recurso terapêutico indispensável (embora pontual) para muitos pacientes, sobretudo os mais graves. As unidades de internação psiquiátrica em hospital geral (UIPHG) oferecem uma alternativa recomendável.1 Em que pese seu incremento na última década (aumento de 75% no número de leitos, comparado ao decréscimo de 30% nos leitos em hospitais psiquiátricos), os leitos em UIPHG representam apenas 3% do total dos leitos psiquiátricos no País.1 Na região metropolitana de Campinas, entretanto, o peso relativo das UIPHG é sensivelmente maior, respondendo por 25% a 30% das internações psiquiátricas.*

O presente estudo tem como objetivo identificar variáveis sociodemográficas e clínicas associadas com o êxito ou o fracasso da internação em uma unidade de internação psiquiátrica. Pretende-se, assim, caracterizar população que tipicamente se beneficia ou não da internação psiquiátrica em hospital geral.

MÉTODOS

Foi estudada uma UIHPG de Campinas, SP, cujas características eram as seguintes: contava com 16 leitos, recebendo pacientes tanto do serviço de emergência psiquiátrica (a maior parte) como do ambulatório de psiquiatria e de enfermarias clínicas e cirúrgicas do hospital. A equipe responsável pelo atendimento diário compunha-se de seis médicos residentes; três professores de psiquiatria que, além da supervisão assistencial, promoviam reuniões clínicas semanais nas quais eram revisados os diagnósticos dos pacientes; quatro enfermeiros (incluindo um docente); uma psicóloga e uma terapeuta ocupacional. Praticamente todos os pacientes admitidos faziam uso de psicofármacos e freqüentavam atividades de grupoterapia e terapia ocupacional. Alguns pacientes eram submetidos também à eletroconvulsoterapia. Esta unidade funcionava com o sistema “portas fechadas”, devido ao perfil da população internada.

No período de 5 de dezembro de 1986 a 11 de dezembro de 1997, houve 2.047 internações na UIHPG, correspondendo a 1.615 pacientes (houve 432 reinternações). Para efeito de análise, considerou-se apenas a primeira internação desses pacientes. Foram excluídos 152 pacientes (seis casos de indivíduos menores de 12 anos, 20 casos com internação de mais de 90 dias de duração e 126 casos com dados incompletos), restando 1.463 casos para análise.

As seguintes variáveis foram transcritas do prontuário para compor um banco de dados: sociodemográficas (gênero, idade, estado civil, escolaridade, filiação religiosa, exercício de atividade profissional e cidade de procedência) e clínicas (diagnóstico final, duração da doença, número de internações psiquiátricas anteriores, duração da internação e condições de alta).

Algumas variáveis foram reagrupadas para otimizar a descrição e a análise estatística. Para idade, definiram-se dois grupos: idosos (>60 anos) e jovens e adultos (12 a 59 anos). O estado civil (solteiro, casado, amasiado, separado ou viúvo, originalmente) foi reagrupado em “com vínculo matrimonial” (casado ou amasiado) e “sem vínculo” (solteiro, separado ou viúvo). A filiação religiosa foi reagrupada em “católicos”, “protestantes” (protestantes históricos, pentecostais, neopentecostais, etc.) e “outros” (todas as demais filiações religiosas).

Quanto ao exercício de funções sociais relacionadas a trabalho, estudo e tarefas domésticas, os pacientes foram agrupados em “exerce” (os que trabalhavam fora de casa, donas-de-casa ativas e estudantes) e “não exerce” (pessoas que não exerciam tais funções antes de serem internadas). O item “cidade de procedência” foi agrupado em “Campinas” e “outras cidades”. Para as variáveis clínicas, os diagnósticos realizados ao final da internação foram agrupados em: esquizofrenia, transtornos do humor, transtornos neuróticos e de personalidade, transtornos psicorgânicos (demências, delirium, deficiência mental como primeiro diagnóstico), transtornos decorrentes do uso de substância psicoativa e outros (todos os demais diagnósticos).

A variável “condições de alta” foi obtida através da avaliação do estado mental e comportamental do paciente no momento da alta. As possibilidades eram originalmente: ótimas, boas, inalteradas, ruins e muito ruins. Posteriormente elas foram reagrupadas em “boas” (ótimas e boas) e “ruins” (inalteradas, ruins e muito ruins).

Uma variável denominada “desfecho da internação” foi elaborada a partir da combinação de duas variáveis: “condição de alta” e “duração da internação”. Para tal variável, quatro categorias de desfecho foram definidas: “desfecho muito positivo” (condição de alta “boa” e duração da internação menor do que 21 dias), “desfecho positivo” (condição de alta “boa” e duração da internação maior do que 21 dias), “desfecho negativo” (condição de alta “ruim” e duração da internação menor do que 21 dias) e “desfecho muito negativo” (condição de alta “ruim” e duração da internação maior do que 21 dias).

A análise estatística utilizou o programa SAS (versão 6.12).8,9 Para a análise de regressão logística politômica univariada e multivariada (modelo de odds proporcionais, processo de seleção stepwise),3 a variável dependente utilizada foi “desfecho da internação”. No caso do diagnóstico, as comparações foram feitas utilizando como nível de referência os transtornos do humor. Essa escolha se explica pelo maior percentual de desfechos muito positivos e positivos dessa categoria.

RESULTADOS

As variáveis sociodemográficas dos pacientes internados encontram-se na Tabela 1, onde também são apresentados antecedentes dos pacientes (duração da doença e internações prévias), diagnóstico final e variáveis relativas propriamente à internação (duração, condição de alta e – combinação dessas duas – desfecho).

Na Tabela 2, encontra-se a freqüência de desfecho da internação distribuída segundo faixa etária, exercício de função social e diagnóstico.

Quanto ao sucesso da internação, os resultados da regressão logística politômica univariada encontram-se na Tabela 3, e a multivariada, na Tabela 4. Os resultados mostram que os pacientes com idade igual ou superior a 60 anos têm 2,2 vezes mais risco de um desfecho pior do que os com menos de 60 anos; os pacientes que não exercem função social têm 1,7 vezes mais risco de um desfecho pior do que os que exercem; os pacientes com diagnóstico de transtorno psicorgânico têm 2,7 vezes mais risco de um desfecho pior do que os pacientes com transtornos de humor.

DISCUSSÃO

O presente estudo, se comparado aos existentes na literatura revisados por Pfeiffer,5 analisa um número muito expressivo de internações (N=1.463), merecendo destaque adicional o fato dessa casuística provir de uma UIPHG universitária no Brasil. Além disso, até onde se sabe, o presente estudo é o primeiro a definir o resultado da internação (variável “desfecho”), combinando as variáveis “condição de alta” e “tempo de permanência”.

Embora exista controvérsia na literatura, a maioria dos trabalhos de revisão não encontrou relação entre o resultado da internação e o tempo de permanência.2,4,5 Assim, a medida de sucesso (melhora dos sintomas em prazo relativamente curto, de até três semanas) parece bem ajustada às expectativas existentes em torno do papel das UIPHG no contexto atual da assistência psiquiátrica.

Por outro lado, algumas limitações deste estudo são mencionadas a seguir. Em primeiro lugar, trata-se de um estudo retrospectivo, com informações coletadas ao longo de mais de uma década. A melhora dos sintomas foi definida por meio de parâmetros clínicos, implicando uma “impressão global” do médico, de forma não padronizada, sem a devida quantificação psicométrica. Uma variável que se mostrou relevante na análise de regressão logística, o “exercício de função social” teve uma elevada proporção de falta de registro. A elaboração do diagnóstico baseou-se em parâmetros clínicos e na experiência dos docentes de psiquiatria, não tendo sido usados instrumentos diagnósticos padronizados. Além disso, não foi possível utilizar mais de um diagnóstico para o mesmo paciente, pois foi preciso ater-se ao diagnóstico de saída do paciente (que foi considerado mais adequado por ter sido realizado após prolongada observação), informação obtida por meio do termo de alta hospitalar, no qual apenas o principal transtorno era codificado.

Metade dos pacientes internados receberam diagnóstico de esquizofrenia ou de transtorno de humor. Comparando a distribuição diagnóstica com dados de 1995, relativos ao conjunto das internações psiquiátricas realizadas em hospital geral no Brasil1, encontrou-se na presente casuística menor proporção de esquizofrenia (19,1% x 29,2%) e de transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas (7,3% x 17,5%). Também foi observada maior proporção das seguintes condições: transtorno de humor (30% x 8,6%), transtornos neuróticos ou de personalidade (15% x 3,6%) e transtornos psicorgânicos (9,3% x 1,7).

Em relação ao resultado da internação, destaca-se o fato de mais de 80% dos pacientes terem apresentado significativa melhora dos sintomas, sendo que, destes, dois terços em prazo inferior a três semanas, o que comprova a efetividade do tratamento instituído na unidade.

Quanto ao desfecho “muito positivo” ou “positivo”, o ranking entre os diagnósticos foi o seguinte: a) transtorno do humor (89,9%); b) esquizofrenia (85,6%); c) transtorno neurótico ou de personalidade (85,4%); d) transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas (70,1%) e e) transtornos psicorgânicos (59%).

Na análise de regressão logística multivariada, três variáveis apresentaram correlação com o desfecho: faixa etária, exercício de função social e diagnóstico. Os pacientes com desfecho menos favorável foram aqueles com idade igual ou superior a 60 anos (2,2 vezes mais riscos de desfecho desfavorável), que não exerciam suas funções sociais antes da internação (1,7 vezes mais risco de desfecho desfavorável) e aqueles com transtorno psicorgânico (2,7 vezes mais riscos de desfecho desfavorável). Os presentes resultados corroboram dados da literatura, nos quais o nível prévio de funcionamento, social e/ou ocupacional são mencionados como preditores de um bom resultado da internação, assim como a ausência de síndrome psicorgânica.4,6

Por outro lado, não foi encontrada associação com outras variáveis mencionadas na literatura, como número de hospitalizações prévias, status marital e duração da doença.5,7 Como se optou por trabalhar apenas com duas faixas etárias, é difícil comparar os dados com aqueles que utilizaram idade como variável contínua, não sendo possível encontrar relação com o resultado da internação.4 Além disso, também não foi encontrada associação com gênero.4

Em relação ao diagnóstico clínico, somente os extremos diferiram significativamente entre si: os transtornos psicorgânicos (pior desfecho) dos transtornos do humor (melhor desfecho). É preciso entender, porém, que o desfecho dos transtornos psicorgânicos deve ser contextualizado, uma vez que nem sempre este é o objetivo principal da internação. É o que ocorre, por exemplo, nos quadros demenciais e demais doenças degenerativas do sistema nervoso central. A internação de pacientes com tais transtornos na UIPHG pode servir aos propósitos igualmente importantes de esclarecimento diagnóstico (etiológico) ou de controle comportamental, mesmo quando não se dispõe de um tratamento para a condição encontrada.

Desta forma, pode-se afirmar que, de modo geral, os presentes resultados são compatíveis com aqueles da literatura que atribuem um poder preditivo modesto aos grupos diagnósticos quanto ao resultado da hospitalização.4-6

Em conclusão, constatou-se que a internação em UIPHG foi eficaz para a maior parte dos pacientes. No entanto, ao se combinar a duração da internação com as condições do paciente por ocasião da alta hospitalar, observou-se que, para os indivíduos idosos, com menos habilidades sociais e com transtornos psiquiátricos cuja base são alterações cerebrais, a internação em UIHPG tem menor eficácia. Possivelmente, esses pacientes necessitam (e talvez se beneficiem mais) de intervenções voltadas para a reabilitação psicossocial, como o treinamento em habilidades sociais e apoio para seus cuidadores. Os dados aqui apresentados reforçam a necessidade de mais estudos planejados para analisar o desempenho das internações psiquiátricas em hospitais gerais.

AGRADECIMENTOS

A Helymar da Costa Machado, do Serviço de Apoio Estatístico da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, pelo realização das análises estatísticas multivariadas.

REFERÊNCIAS

  1. Botega NJ. Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. Porto Alegre: Artmed; 2002. Psiquiatria no hospital geral: histórico e tendências; p.15-30.[ Links]
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  8. The SAS Institute. The SAS System for Windows (Statistical Analysis System). Version 6.12. Cary, NC; 1989-1996[ Links]
  9. Stokes ME, Davis CS, Koch GG. Categorical data analysis using the SAS System. Cary, NC: The SAS Institute; 1990.[ Links]

Fonte:

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102003000500013

On-line version ISSN 1518-8787Rev. Saúde Pública vol.37 no.5 São Paulo Oct. 2003

http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102003000500013